A Sagrada Liturgia da Palavra
de hoje nos apresenta, por um lado, uma autêntica tragédia; por outro,
uma grande graça (cf. Mt 2,13-18). Talvez, ao fazermos o balanço do ano
que já está se despedindo, possamos perceber também estes dois momentos
se entrelaçando em nossas lembranças. Mas como será possível um mundo – e
ano – tão amado por Deus e, ao mesmo tempo, tão visitado pelos
imprevistos causados pelos pecados humanos? E por que não dizer,
humildemente, “minha culpa, minha tão grande culpa”!
Retornando ao texto evangélico,
deparamo-nos com a Boa Nova acontecendo por meio da docilidade de fé do
pai adotivo de Jesus: “O Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe
disse: ‘Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá
até que eu te avise!’” (Mt 2,13). A Providência Santíssima pôde contar
com o glorioso São José, não somente para se levantar e ir a um lugar
seguro com a Sagrada Família, mas para o momento certo do retorno à
pátria.
É sempre assim com Deus, “há um tempo
para cada coisa”, mas somente os homens de fé e coragem poderão
experimentar e constatar esta graça nos momentos tranquilos e
dificultosos da vida. Outros até recebem os gratuitos presentes do
Senhor, mas preferem, na ignorância e cegueira espiritual, atribuir os
bens recebidos à sorte ou às criaturas que, na verdade, são meios da
providência cientes ou não. E o que Deus faz? Continua amando e
investindo na conversão de Seus amados filhos e filhas, até se
descobrirem o quão amáveis são!
No caso da Virgem Maria e São José, eles
constataram a presença do Protetor e Rocha Eterna também em meio às
provações da vida! Repito: da vida. “Porque Herodes vai procurar o
menino para matá-lo” (v. 13). São José não pediu explicações a Deus nem
foi imprudentemente perguntar a Herodes, o porquê daquela atitude
injusta e louca perante o Rei dos Reis, da estirpe de Davi, Salvador e
Cristo. São José simplesmente colocou em prática a sua fé obediente e,
assim, a Sagrada Família foi salva! Mas, infelizmente, a desgraça não
deixou de ferir o coração de Deus, por causa do orgulho ferido de
Herodes: “Quando Herodes percebeu que os magos o haviam enganado, ficou
muito furioso. Mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o
território vizinho, de dois anos para baixo, exatamente conforme o tempo
indicado pelos magos” (v.16).
Um histórico afresco (pintura), presente
no lugar do encontro da Virgem Maria com Santa Isabel, na Palestina,
retrata a matança dos Santos Inocentes e faz questão de recordar que,
por traz de uma Rocha, o pequenino São João Batista foi escondido e
também se livrou deste infanticídio. Esta Rocha da Vida é a Providência
Santíssima que, se possível fosse, evitaria a morte de todos os
inocentes do passado e do presente.
Sobre este mistério da ação de Deus no
mundo e a rebeldia ou docilidade humana, muito bem escreveu o Papa Bento
XVI em seu último livro da trilogia ‘Jesus de Nazaré’, ao tratar da
exemplar docilidade de fé da Virgem Maria, que possibilitou a encarnação
do Verbo: “Agora, Deus procura entrar de novo no mundo, por isso bate à
porta de Maria. Tem necessidade do concurso da liberdade humana; não
pode redimir o homem, criado livre, sem um ‘sim’ livre à Sua vontade. Ao
criar a liberdade, de certo modo, Deus se tornou dependente do homem. O
Seu poder está ligado ao ‘sim’ não forçado de uma pessoa humana”
(BENTO XVI, A infância de Jesus, 37).
Assim Deus, em Sua infinita bondade,
continua a bater na porta dos corações para que a vida possa acontecer,
desenvolver-se e manifestar-se ao mundo. Mas quantos permitem isso? Terá
Deus de fazer todas as coisas, tratando o ser humano como marionete e
contradizendo o dom irrevogável da liberdade? De fato, muitos não
ouviram a Palavra de Deus para poderem crer e mudar de vida, mas ninguém
perante o tribunal divino poderá alegar a falta de liberdade e a
neutralidade de uma lei interior que dita em cada ser humano uma Palavra
de vida que em todos está impressa: “vivei o bem e evitai o mal”. Por
isso também a Palavra do Senhor não deixa de exortar a cada ser humano:
“Falai e procedei, pois, como pessoas que vão ser julgadas pela Lei da
liberdade” (Tg 2, 12). Neste ponto, também a perícope que nos propomos
meditar na proximidade de um próximo ano, do calendário civil, acaba por
nos apontar o Norte, pois “ali ficou até a morte de Herodes, para se
cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: Do Egito chamei o meu
Filho” (Mt 2, 15).
Somente Deus pode dar sentido às
desgraças que acabam por atingir a nós, à Igreja e à humanidade em
geral. Não como um Senhor controlador, mas como o amoroso Deus,
Todo-Poderoso que pode e sabe, a Seu tempo, tirar um bem de qualquer
realidade, principalmente daquela por Ele não desejada e tão pouco
participada. Portanto, nestes dias que ainda nos restam de ano e de
vida, recorramos à Palavra do Senhor e do Espírito Santo, o qual age
principalmente pelos sacramentos, para que o nosso falar e proceder
possa corresponder aos dons recebidos, sem jamais condenar aqueles que
caminham conosco: “Pensai bem: o julgamento vai ser sem misericórdia
para quem não praticou misericórdia; a misericórdia, porém, triunfa
sobre o julgamento” (Tg 2,13).
Faço a você o último pedido do ano: não
digamos mais que é complicado (tudo o que toca a nossa
responsabilidade), embora seja complexo e até misterioso boa parte das
coisas nesta bela vida.
Feliz Ano Novo, com fé dócil à Palavra de
Deus e ao Espírito Santo, misericórdia Divina para conosco e de nós
para todos os demais! Louvor e Glória ao Senhor!
Padre Fernando Santamaria- Canção Nova