Dom Murilo S. R. Krieger
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil
Tenho, por vezes, a impressão de que nossos jornais e noticiários de TV reservam um espaço diário para as tragédias de trânsito. Variam os locais dos acidentes e são diferentes os horários e as circunstâncias em que ocorrem; também não coincide o número de envolvidos ou o saldo de mortos e feridos. Mas as notícias de capotamentos, batidas e acidentes se renovam, numa repetição que seria monótona, se não fosse trágica.
Sucedem-se reportagens sobre as condições das estradas e o comportamento dos motoristas. Há aquelas que acentuam mais a falta de segurança nas rodovias; outras, a inexistência de um mínimo de sinalização que dê tranquilidade aos que viajam de dia ou em noites de chuva; a maioria das reportagens se referem, contudo, à imprudência daqueles que se julgam verdadeiros pilotos da Fórmula 1, constituindo-se numa constante ameaça aos demais motoristas das rodovias ou avenidas de nossas cidades.
Os números e os pormenores a respeito dos acidentados são cruéis. As estatísticas não se resumem mais ao número de mortos num determinado período: começamos a ser informados sobre o número daqueles que morrerão até o final do ano em curso ou dos próximos anos. Há o perigo de nos familiarizarmos com os quadros que nos mostram quantos estão marcados para morrer, como se isso fosse inevitável. O pior de tudo é que a realidade tem superado tais previsões: o número de acidentes, de mortos e feridos tem sido acima das expectativas mais pessimistas.
Sabe-se que há, realmente, muito de imprudência por trás de tais números. Basta transitarmos um pouco por nossas cidades ou rodovias para nos convencermos de que é necessária uma reeducação para o trânsito. Tem-se, por vezes, a impressão de que já que não conseguiram fazer tudo o que haviam planejado, muitos motoristas querem, a todo o custo, superar os limites impostos pelo tempo e espaço. À medida que desrespeitam as mais elementares leis de trânsito, põem em perigo não só suas próprias vidas – o que já seria de se lastimar –, mas também as de inúmeros inocentes, que nada têm a ver com as tensões e a pressa de motoristas imprudentes.
Viajar, por vezes, significa arriscar-se, enfrentando perigos que se renovam. Quem tem fé, mais do que oferecer sua viagem ao Senhor da Vida sente que é preciso oferecer a vida ao Senhor da História, porque não sabe o que o aguarda nos momentos seguintes. Um dos personagens de Guimarães Rosa dizia que "Viver é muito perigoso". Não é possível imaginar o que tal personagem diria se, saindo do interior de Minas Gerais e deixando de lado mula, palheiro e companheiros de prosa, conhecesse nossas estradas e avenidas.
Soube que, tempos atrás, numa determinada rodovia, todos os carros tiveram que parar. Foi perguntado a um homem que, a pé, vinha em sentido contrário, o que teria acontecido. Com a naturalidade de quem vira algo que lhe era comum, respondeu secamente: "Um desastre. Morreram quatro."
"Morreram quatro!" Um número. Um dado para as estatísticas. Se tivessem sido dois, três ou seis, parece que seria a mesma coisa. Temos a terrível capacidade de nos acostumar com a desgraça alheia.
Por trás dos números, porém, há nomes, idades e histórias. Há pais que passarão a chorar o resto de suas vidas a dor de um filho que não mais voltará para casa. E a esposa que verá, de repente, a destruição de tantos sonhos? E o olhar perdido de filhos, à espera de alguém que lhes diga que foi engano, que papai voltará e poderá, então, brincar com eles?...
Há necessidade de um verdadeiro mutirão, do qual participem autoridades, políticos, comerciantes, estudantes e operários, adultos e jovens – mutirão que, diante do triste quadro de nosso trânsito, procure dar uma resposta à pergunta: O que podemos fazer para mudar essa situação?
Não podemos é ficar indiferentes diante de frias estatísticas, aguardando a confirmação ou não do número daqueles que foram marcados para morrer no próximo carnaval, na festa de São João ou num outro feriado qualquer de nosso calendário...
Fonte: CNBB
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