segunda-feira, 4 de maio de 2015

O Cultivo pela Paz nos Primeiros Séculos do Cristianismo

Dom Vital Corbellini
Bispo de Marabá (PA)

Introdução
Somos da Paz. A CNBB coloca-nos 2015, como o ano da paz como dom e como missão. Nós somos chamados a viver o dom da paz na família, comunidade e sociedade. A paz vem do alto, do Pai, de Cristo Jesus, em unidade com o Espírito Santo. A busca pela paz, na atualidade, é fundamental, constituindo-se na melhor saída para as pessoas e governantes diante da realidade do ódio e da guerra, que trazem divisões, desastres, destruições, fome e mortes. A paz exprime os valores da alegria, fraternidade, reconciliação. Somos pessoas que devem cultivar a paz em Cristo, com as pessoas e consigo mesmas.
O mundo antigo cultivou o desejo pela paz. No tempo dos Augustos houve um período de paz. As províncias atingiram um considerável desenvolvimento e numerosos obstáculos foram superados em face da circulação dos bens e das idéias. Nesse contexto (Império Romano), floresceu o cristianismo, pela organização das comunidades e pelo anúncio do evangelho de Cristo. Os cristãos liam a Sagrada Escritura reforçando a paz como dom de Deus ligada ao Senhor: o Messias viria para estabelecê-la entre os povos . Quando Jesus esteve com os seus, foi uma pessoa de paz e a espalhou ao seu redor, fazendo o bem por toda parte . Ele trouxe alegria para coxos, cegos, paralíticos e pobres . Os cristãos entendiam a paz como fruto da justiça e da caridade; ela era percebida como tarefa a ser construída nas comunidades. A paz exigia o bom entendimento, o perdão e a reconciliação mesmo com as perseguições. Ora, nos primeiros séculos, os cristãos viveram momentos de paz e de perseguições. A nossa análise tem presentes os padres dos primeiros séculos: os apostólicos e os apologistas no cultivo da paz.
1) A Paz em Meio às Perseguições
Junto ao mundo pagão, o cristianismo não foi recebido numa situação de paz, tendo sofrido rejeições por causa de sua novidade e transformação de vida que possibilitava às pessoas. O desejo da verdade, da liberdade em Cristo suscitava conversões nos pagãos para a nova religião (o cristianismo). Porém, os conflitos e perseguições não deixaram de aparecer diante do novo movimento feito pelos seguidores do Senhor Jesus. A nova religião era um incômodo para as autoridades, para o povo pagão e também para alguns escritores antigos. Se a palavra paz em grego é eiréne, cujo significado é conciliação, vida dada no amor, as perseguições traziam uma outra situação, insegurança, perda das propriedades, perda de uma identidade própria, porque o nome “cristão” tinha como conseqüência a perseguição, a separação das pessoas e das famílias chegando até a morte.
Assim, até o início do IV século, quem era cristão vivia momentos de paz, de insegurança e de perseguição. Mas, se por um lado, a perseguição jogava a comunidade na desordem, por outro lado, era uma ocasião da Igreja aprofundar a sua fé em Cristo Jesus para retomar-se nos tempos sucessivos. Os cristãos procuravam viver o tempo do martírio com a consciência de que o seu sacrifício era dado em união com a Igreja e o sacrifício de Cristo na cruz (O Archimártyr). Neste sentido, Tertuliano dirá, no século III: “O sangue é semente de cristãos”. O sangue derramado era um estímulo ao pagão convertido ao cristianismo pelo abraço da fé e da vivência da caridade cristã.

2) A construção da paz a partir da comunidade eclesial
A paz é dada como graça de Deus; mas ela é também tarefa humana, suscitada em meio aos conflitos e problemas que os seres humanos criaram entre si. Se os cristãos enfrentaram a realidade externa permeada pelas perseguições, eles se confrontaram também com problemas internos das comunidades. Os padres da Igreja falavam da necessidade de construir relações fraternas num contexto comunitário, tendo como referência o evangelho, a boa nova do Reino de Deus.
No final do I século, a comunidade de Corintios recebeu uma atenção particular pelo bispo de Roma, Clemente Romano (96-98 d.C.). Algumas pessoas na comunidade se revoltaram contra os seus líderes (bispos, presbíteros e diáconos) e os destituíram de seus cargos. Clemente diz que a revolta escandalizou não só os cristãos, mas também os pagãos, tanto que o nome da comunidade, tão célebre e amado por outras comunidades, ficou comprometido. Clemente conclamava a todos pela ordem e pela concórdia fazendo uma longa análise social das coisas e tomando dados, sobretudo da Sagrada Escritura, no argumento pela paz, entendendo-a como valor fundamental nas relações humanas.
Se a alegria pela vivência da mensagem do Senhor não constitui o ponto central da comunidade, esta perdeu o seu aspecto fundamental; a vida de Jesus Cristo como Salvador e Promotor da Paz. Dessa maneira, Clemente via no arrependimento a forma correta à conversão como uma porta aberta que leva à vida: o amor entre as pessoas diz respeito à assunção do mandamento do Senhor.
Inácio de Antioquia (110-130) foi um padre apostólico que trabalhou pela paz junto às suas comunidades. Diante dos dualistas gnósticos, ele teve que defender a unidade da pessoa do Senhor: “Há apenas um médico carnal e espiritual, gerado e não-gerado, Deus feito carne, Filho de Maria e Filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeiro passível e agora impassível, Jesus Cristo Nosso Senhor”. Na comunidade, o bispo de Antioquia exortava aos seus fiéis para que todas as coisas fossem feitas na concórdia e na paz.
Policarpo (+167) valorizava a paz como fruto da gratuidade e da caridade. Ele dizia que a paz é edificada entre as pessoas e povos quando todos estenderem suas mãos uns aos outros. No entanto, ele falava de algo destruidor da reconciliação: o amor excessivo ao dinheiro, como o princípio de todos os males. Por isso, ele exortava a comunidade de Filipenses para armar-se com as armas da justiça, do amor, segundo o mandamento do Senhor.
3) A edificação da paz é um desafio permanente na comunidade cristã com o mundo externo.
Se os padres apostólicos ressaltaram a necessidade da paz no interior das comunidades, os padres apologistas que os sucederam tinham presentes o diálogo com o mundo pagão e judaico. Nestes contextos, eles afirmavam a realidade da vivência dos cristãos como pessoas de paz, pois eles não reivindicavam vingança diante das calúnias correntes.
Aristides, um dos primeiros apologistas, descreveu os cristãos como pessoas de paz e construtores de boas relações entre as pessoas. Ele afirmava que “eles (os cristãos) não fazem aos outros o que não querem que se faça a eles; aos que os ofendem, eles exortam e procuram torná-los amigos e empenham-se em fazer o bem aos inimigos”.
Atenágoras defendeu os cristãos diante das autoridades romanas a construção da paz na comunidade. Diante da acusação de ateísmo, ele afirmou a fé num único Deus, Criador de todas as coisas. Outra acusação afirmava serem os cristãos antropófagos. Atenágoras rebate-a, ressaltando a atitude dos cristãos em favor da vida, pois estes não suportam execuções sumárias. Dessa forma, Atenágoras reforçou o valor da paz entre os cristãos.
A reflexão apologista traz também a palavra de Teófilo de Antioquia no cultivo da paz. Este autor analisava a criação, ressaltando a ordem entre os seres irracionais, racionais, no caso, o ser humano. As coisas foram bem-feitas por Deus, pois Ele não criou alguma coisa que lhe trouxesse a desordem e a falta de paz. No entanto, o ser humano pecou, destruindo a harmonia primordial, e, assim, a desordem e a violência foram conseqüências não só a alguns seres, mas até na natureza em geral. Teófilo afirmava que a ferocidade dos animais não estava presente no paraíso; porém, quando o homem se afastou de Deus, tornando-se transgressor, os animais seguiram o homem, sendo também transgressores uns com os outros.
O II século teve ainda a presença importantíssima de Justino. Ele valorizou a paz como dom de Deus, no sentido de que esta fosse realidade no contexto eclesial e social. Ele a viu como forma de reconciliação entre as pessoas. Acontece que os cristãos sofriam perseguição por parte dos pagãos porque eles carregavam o nome de cristãos. O nome “cristão” não podia ser algo que conduzisse à perseguição, porque a liberdade e a adesão à nova religião deveriam ser consideradas justas diante dos governantes. Ele não tinha medo de afirmar junto às autoridades e ao povo pagão que os cristãos favorecem a paz: “Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenção da paz, pois professamos doutrinas como a de que não é possível ocultar de Deus o malfeitor, o avaro, o conspirador ou o homem virtuoso, e que cada um caminha para o castigo ou salvação eterna, conforme o mérito de suas ações”.
Justino falava da presença do Messias, como Aquele que foi anunciado nas Sagradas Escrituras, sendo Ele a esperança de salvação para todas as nações. Os povos transformarão as armas, instrumentos de morte, em utensílios agrícolas, significando o sustento de suas próprias vidas. Para Justino, tal promessa realizou-se no Messias e os seus discípulos a continuaram na história, porque a missão de Jesus prossegue naquela dos discípulos: a sua presença será com eles até o fim.
Justino colocava o Senhor Jesus como o homem da paz, como aquele que não retribuiu a violência com a violência, mas com o amor. Quanto à profecia relativa à paixão e a sua desonra dada na cruz, o apologista romano afirmava que o Messias era o homem sofredor que assumiu as dores de todos nós: Ele foi entregue à morte, contado entre os iníquos e, além do mais, Ele tomou os pecados de muitos levando a todos a reconciliação.
A Carta a Diogneto apresenta traços importantes na vida dos cristãos do II século. Este dizia que os cristãos eram pessoas que procuravam a paz. Pela sua forma de vida, eles testemunhavam um modo de vida social admirável. Neste sentido, a Carta a Diogneto dizia que os cristãos amam a todos e são perseguidos, são desconhecidos e condenados; são pobres e enriquecem a muitos; são injuriados e bendizem, são maltratados e honram, fazem o bem e são punidos como malfeitores, são condenados e permaneciam na alegria como se recebessem a vida. Ele fala da vida do Verbo de Deus em vista da paz, do amor, valores que deveriam reinar neste mundo. Deus enviou o seu Filho como homem entre os seres humanos, em vista do bem humano, do amor e do reinado da paz. O Verbo encarnado revelou quem é o Deus Criador do Universo: paciente e amigo das pessoas humanas. Ele foi sempre clemente, bom e verdadeiro. Dessa forma, o ser humano, em particular o cristão, para imitar o Deus da paz em Jesus Cristo e a sua felicidade, não pode estar acima dos mais fracos, enriquecer-se ou praticar a violência contra os inferiores: Ele deve seguir Jesus Cristo, o Príncipe da Paz dado por Deus à humanidade.
Conclusão
O cultivo da paz foi um dos principais fatores na vida das primeiras comunidades cristãs. A sua concretização trazia alegria aos seus membros. Eles tinham consigo a presença do Messias, Jesus Cristo, como o enviado do Pai, aquele que trouxe a paz para todo ser humano. Os cristãos, aqueles que continuam a missão de Cristo na história, tiveram este dom como um grande desafio para ser construído de uma forma permanente. Eles lutavam pela paz diante das autoridades, do povo e de escritores e, ainda que estes os perseguissem, não reivindicavam a vingança com a vingança, eles eram felizes por sofrer em nome do Senhor Jesus Cristo. Assim, muitos acabaram no martírio ou no exílio. A paz era também um desafio no interior das comunidades pelas divisões encontradas, pois enquanto havia doutrinas heréticas e líderes que, sem compromissos com o pastoreio de seu povo, desfavoreciam situações de paz, outros tantos se preocupavam pelo bem das pessoas de suas comunidades com atitudes e formas de paz.
Por isso, a paz é uma atitude de vida que busca o bem das pessoas. Ela é fruto da justiça, da fraternidade e do amor. Ela foi, é e continua sendo um desafio para todo ser humano em qualquer tempo; porque diante do dom da paz, erguem-se problemas de relacionamentos entre pessoas, comunidades e povos. Nós devemos educar as nossas gerações para a paz. A Palavra de Deus deve ressoar nos ouvidos e práticas de vida de todos os seguidores de Cristo: “Felizes os que promovem a paz” Quem trabalha pela paz está em união com o Senhor Jesus Cristo e o seu Reino. Quem procura a paz, encontra-se com Deus, porque Ele é Paz. Assim a paz, o amor ao Senhor, ao próximo como a si mesmo, devem ser a base na construção de toda comunidade e sociedade, a exemplo das primeiras comunidades cristãs.
 FONTE:CNBB

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