Publicado em: 22/05/2012 | Seção: Blog | Assunto: blog
Neste
artigo falamos de dois grandes pastores, figuras humanas que edificaram
casa de Deus, isto é, a Igreja, tendo como alicerce sólido o bem e a
justiça, não cedendo às ciladas dos injustos e poderosos; Dom Helder
Pessoa Câmara e Dom Aloísio Cardeal Lorscheider, que as nossas gerações
hodiernas, pelo que eles representam, precisam conhecer ainda mais.
Neles a profecia de Jeremias se realizou: “Eu vos darei pastores segundo
o meu coração, que vos conduzam com sabedoria e inteligência” (Jr 3,
15). Anunciaram a boa nova da Salvação em toda sua plenitude, a partir
da dor e do sofrimento de uma multidão de irmãos e irmãs. O entusiasmo e
a mística desses grandes sacerdotes causaram e continuam a causar
profundas marcas de generosidade, sempre crescente, nas pessoas que
exerceram e exercem suas funções nos mais diversificados setores de
nossa sociedade.
Guardemos no íntimo do coração a
mensagem de otimismo e esperança, deixada por Dom Helder Câmara, o
artesão da paz e cidadão do mundo, o bispo brasileiro mais influente no
Concílio Vaticano II, ao abrir o caminho para a renovação, na sua mais
profunda e autêntica coerência em favor dos pobres: “Se não engano, nós,
os homens da Igreja, deveríamos realizar dentro da Igreja as mudanças
que exigimos da sociedade”.
Falou também com extraordinária paixão
que Deus é amor, em tom daquilo que lhe era muito peculiar, a poesia:
“Fomos nós, as tuas criaturas que inventamos teu nome!? O nome não é,
não deve ser um rótulo colado sobre as pessoas e sobre as coisas… O nome
vem de dentro das coisas e pessoas, e não deve ser falso… Tem que
exprimir o mais íntimo do íntimo, a própria razão de ser e existir da
coisa ou da pessoa nomeada… Teu nome é e só podia ser amor”.1
Ao assumir a Arquidiocese de Olinda e
Recife, em abril de 1964, afirmou: “Ninguém se escandalize quando me vir
ao lado de criaturas humanas tidas como indignas e pecadoras (…). “Quem
estiver sofrendo, no corpo ou na alma; quem, pobre ou rico, estiver
desesperado, terá lugar especial no coração do bispo”.2
Dom Helder além de deixar uma gigantesca
obra escrita, com grande sabedoria soube unir, numa síntese raríssima e
feliz o místico e o homem da ação, que contemplava e escrevia ao mesmo
tempo durante as madrugadas e agia pela manhã, tarde e noite. Foi um
articulador da melhor qualidade; dotado de uma fé clamorosa, de uma
enorme capacidade de comunicação, força e convicção inabaláveis, que
saía de dentro do peito magro, daquele homem baixo e franzino na
estatura, que parecia o retirante de Portinari.
Profeta dos pobres, artesão da paz,
cidadão do mundo, o homem dos grandes sonhos e das grandes utopias ele o
foi, a sinalizar uma verdadeira conversão, nas mudanças dos costumes,
no sentido de uma melhor compreensão da Igreja, na busca de sua
renovação, do seu rejuvenescimento – ao verdadeiro “aggiornamento”, ao
mesmo tempo, em que devia anunciar a pessoa de Jesus Cristo, diante do
clamor dos empobrecidos, dos “sem voz e sem vez”.
O grande ardor e entusiasmo desse homem,
em todo seu trabalho bem articulado, no amor pela Igreja pobre e
servidora, nunca podemos negar e esquecer. “Sou daqueles que tem a
convicção de que os escritos de Dom Helder ainda serão fonte de
inspiração na América Latina, daqui a mil anos”.3
Já Dom Aloísio, que no seu amor à
verdade e no apego ao Evangelho, como critério de vida e de pastoreio,
também na sua capacidade de dialogar com as classes sociais e no seu
amor para com os empobrecidos, permaneceu humilde, serviçal, sendo um
irmão entre irmãos.
Doçura e ternura em pessoa, alegria
constante, posições corajosas e determinadas, ao mesmo tempo, pregava e
anunciava o Evangelho com coragem profética e grande sabedoria. Ele
carregou sempre no seu grande coração, as alegrias, as esperanças, as
tristezas, as angústias e os sofrimentos de sua querida gente (cf. GS
200). Além de travar, sem jamais se cansar, uma luta pela
redemocratização, pela liberdade de expressão, pela dignidade da pessoa
humana e pelo fim da tortura em nosso querido Brasil.
Dom Aloísio, ao se tornar Arcebispo de
Fortaleza (1973-1995), logo de início afirmou: “A comunidade eclesial
não é feudo do bispo, mas ele é o servidor de uma Igreja que se entende a
si mesma como sacramento do Reino, isto é, da presença da verdade e do
amor infinito de Deus para com cada criatura humana”.4
Daí ele não compreender como algo
natural e normal se conviver com a miséria e o acentuado empobrecimento
do povo, que tinha como conseqüência o êxodo, o flagelo e a morte de
muitos irmãos, levantando sua voz de profeta para dizer que não era
vontade de Deus a realidade aqui encontrada e, ao mesmo tempo, usou de
todos os meios, com uma enorme vontade de transformar essa mesma
realidade, marcando profundamente a história do nosso Ceará.
“Em pleno regime de exceção, a sociedade
cearense logo sentiu os efeitos dessa guinada. As camadas
desfavorecidas ou marginalizadas, os sem-terra, os sem-teto, os presos
políticos, os presidiários comuns, os trabalhadores em greve – ganharam
aliado de peso”.5
Dom Aloísio foi o grande teólogo que
sabia compreender a realidade na sua conjuntura e, com suas posições bem
claras e definidas, nas análises e nas conclusões teológicas pastorais,
passando para o povo um clima que favorecia e gerava uma confiança
generalizada. Daí ser o Cardeal que mais se destacou em todos os
Conclaves e Sínodos de que participou, gerando para o mundo inteiro e,
especialmente para a imprensa, uma grande expectativa. Sua palavra
corajosa e profética era acolhida por todos como uma boa notícia.
“[...] sua voz, naturalmente doce,
alternava-se quando era preciso confrontar os vendilhões da justiça,
quando todos os jardins da democracia corriam o risco de ser alvo de
bombas atiradas pelos olhares fixos da repressão. Sua voz ecoou pelos
corredores das prisões [...]”.6
Quando ele se tornou bispo emérito de
Aparecida, veio a pergunta: O que o senhor vai fazer? Respondeu: “Sou um
simples frade menor e vou fazer o que o meu provincial mandar, porque a
obediência me torna livre”.
Também nunca esquecemos sua palavra
lúcida e segura, advertindo “oportuna e inoportunamente” (2Tm 4, 2), bem
como sua voz mansa e corajosa em denunciar as injustiças e, sobretudo,
sua ternura franciscana, nos leva a afirmar que Dom Aloísio,
verdadeiramente, mora em nossos corações.
Peçamos então a Deus, que na sua
infinita e inesgotável bondade, chamou Dom Helder e Dom Aloísio à missão
de profetizar, que sempre os tenhamos como referência, iluminando-nos e
fazendo sempre mais compreender a indispensável força de sua graça, num
desejo de nos tornar capacitados a fermentar este mundo em que vivemos
na sua realidade cultural, econômico e social, que tanto desafia a
humanidade.
_______________________
1 Câmara, Dom Helder. Em tuas mãos, Senhor! Paulinas. São Paulo, 1986, p. 11.
2 Ibidem. Dom Helder: o artesão da paz. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2009, p. 88.
3 Saraiva, Geovane (padre). A ternura de um pastor: Cardeal Lorscheider. Fortaleza: Editora Celigráfica, 2009, p. 35.
4 Tursi, Carlo; Frencken, Geraldo
(organizadores). Mantenham as lâmpadas acesas: revisitando o caminho,
recriando a caminhada. Fortaleza: Edições UFC, 2008, p. 95.
5 Saraiva, Geovane (padre). A ternura de um pastor: Cardeal Lorscheider. Fortaleza: Editora Celigráfica, 2009, p. 22
6 Ibidem, p. 23
Padre Geovane Saraiva, Pároco de Santo Afonso
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